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Dias Comuns de um Diário Fechado- Memórias Tristes

Tudo o que lembro era de quando eu caminhava pelo jardim pequeno da parte da frente da minha casa. Naquele jardim, tudo era mágico pra mim. Não tínhamos muitas plantas ou um gramado. Apenas uma roseira, um pouco de capim, areia fofa e feijões que temiam em crescer ali. Admito que era culpa minha. Eu sempre roubava alguns caroços e jogava na areia pra poder ver eles crescerem. Minha tia nunca entendia como isso acontecia e ela nunca soube que era quem jogava os caroços ali. Sempre que eu chegava da escola no final da tarde, corria para o jardim. Ficava sentada em cima de um tijolo meio quebrado enterrado na areia escorada na parede com meio reboco. Eu sentava ali e ficava lendo livros enquanto o crepúsculo tomava conta do céu até tudo ficar escuro. Mas para a minha sorte, do lado de fora da minha havia um poste de luz ficando na nossa calçada e mesmo que o muro fosse alto, a luz conseguia penetrar a penumbra clareando minha leitura.

Eu ficava ali até alguém vir me tirar. Era meu cantinho preferido. Enquanto minhas amigas da minha idade preferiam ficar em seus quartos vendo TV ou fazendo qualquer outra bobagem eu preferia ficar sentada lendo. Viajando por mundos que eu nunca conheci e conhecendo pessoas que nunca sonhei conhecer. Era apresentada todo o tempo a situações diversas e em meu mundo, tudo era diferente. Tudo era novo o tempo todo. Todas as letras e conjuntos de palavras eram mais fortes que qualquer outra coisa. Meu pai sempre me comprava algo para ler. Eu devorava um livro como se fosse uma traça numa caixa velha abandonada em algum lugar perdido. Não me importava com o estado do livro, mas sim com a leitura que ele poderia me proporcionar. Minha mãe não entendia porque eu com doze anos de idade não queria saber de passar batom em meus lábios ou ficar entrelaçando os dedos nos fio do telefone fofocando sobre coisas fúteis com amigas. Ela queria que eu fosse a sua boneca de luxo. Que eu fincasse meus dentes na sua realidade.

Mas a sua realidade não era tão atraente quanto a minha. Eu consegui viajar por todo o mundo sem sair do lugar. Apenas sentada na minha meia banda de tijolo enterrado na areia fofa e escura com as pernas estiradas e o cabelo solto caído por cima de meu ombro direito. Essa é a minha lembrança mais forte. Aquela em que me apego quando olho para meu pai com olhos azedos e distantes cutucando uma xícara de café já frio. Quando vejo minha mãe fumando um cigarro após o outro como se quisesse que seus pulmões estourassem e saíssem pelas suas narinas. Quando falam suas vozes são pálidas pra mim. Como se estivesse sussurrando, sibilando como a luz bruxuleante de uma vela. Sinto algo estranho. Não é uma dor. E nem uma tristeza. É algo que vem do fundo. É algo que me compele a ficar observando.

Sinto um tipo de frio que não sei explicar. Sinto um ar pesado pairando sobre minha cabeça e parece que minha voz emudece toda vez que tento dizer algo. Não tenho forças para ir além do que tenho feito. Mas então minha atenção se volta para o jardim. Ele está com mato por todos os lados e meu tijolo afundado na areia não passa de uma lembrança. A luz do poste agora é amarelada e o muro carcomido pelo tempo. Não tenho certeza de muita coisa. Mas sei que devo continuar aqui até que as coisas estejam bem. Então noto um canto em nosso pequeno jardim, próximo a entrada pelo portão comido pela ferrugem, que o mato não consegue crescer ali. E então eu sempre me recordo que foi naquele lugar que encontraram meu corpo inerte e frio. Eu nunca soube o que aconteceu. Mas um dia eu vou descobrir.

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