Foi numa manhã no começo de março que tudo ficou estranho. Esse último mês chovera mais que o normal. Mas nessa manhã o sol brilhou timidamente no oeste. As ruas ainda estavam molhadas pela chuva da madrugada. Pássaros escorregavam pelos céus. Pessoas caminhavam pelo frio da manhã com agasalhos e guarda-chuvas debaixo do braço. Na esquina Seu Adauto armava sua barraquinha de frutas. Numa casa em frente, Dona Jaqueline beijava Samuel, de 12 anos, que estava indo para o colégio. Um gatinho de rua se espreguiçava perto de uma árvore. Rolou no chão e pôs-se de pé novamente olhando o movimento. Mais um dia. Mais uma terça quando Roberto dobra a esquina que dá para a casa de Manuele. Um táxi já estava parado com uma fuça saindo do cano de escapamento. Algumas malas estavam na calçada e Maria, irmã de Manuele enxugava as lágrimas de seus olhos.
Roberto freia a passada por uns instantes. Pensa um pouco, olha para o chão e depois retoma seu rumo. Pesado. Pensativo. Sentido.
Quando vai chegando ao táxi, Manuele aparece com a outra irmã, Marta, que a abraça forte. Maria coloca as malas no porta-malas junto com o taxista. Roberto chega na hora e os olhares deles se encontram no mesmo instante. Manuele o abraça forte amarrotando a farda da empresa que Roberto trabalha. Um abraço seguro para uma história longa. Cheia de idas e vindas. Muita coisa está contida ali. Um amor que perdurou entre encontros e desencontros. E agora, tudo ia mudar. Por fim, sabiam que se amavam. E por fim, serão separados como nunca foram. Manuele teria de ir morar em São Paulo por conta de uma avó e uma grande oportunidade de emprego. Ele não poderia segui-la por conta do próprio emprego. Quando por fim sabem que se amam, serão separados. O destino é assim. Prega peças. Gosta de jogar algo que nem sempre estava nos planos. Algo que esconde o pior. Mas ela prometeu voltar. E a ele só lhe restou acreditar.
Maria chama e entra no táxi na parte da frente, ao lado do motorista. Manuele abraça a Marta que não pode ir com ela até a rodoviária, pois terá de está cedo do trabalho. Despedem-se e Manuele lhe dá um último sorriso. Nunca estiveram separadas antes. Manuele era a caçula e uma sucessão de eventos a jogou nesse trem. Ela entra no táxi com um semblante baixo e Roberto entra em seguida na parte de trás com ela. Ela deixa algumas lágrimas correrem seu rosto branco. Beto coloca o braço por cima dos ombros dela tentando deixá-la mais confortável. Ela olha pelo retrovisor e vê sua casa sumir na distância. Sua voz some. Sua mente vaga pelo tempo. Ela sente o braço de Roberto. Ela o ama.
O caminho para a rodoviária parece mais um calvário. Tudo parece lento, monótono. As pessoas, os carros, os sons. Nada faz sentido.
O carro estaciona de frente à rodoviária. Roberto pega as malas e vão até a ala de espera do local. Maria foi compra uma água. Roberto e Manuele apenas ficam do lado um do outro. Sentindo os corpos. Sabendo que só vão se ver um ano depois. Provavelmente. O que é tudo isso então? Um adeus? Uma dúvida constante? O que pode acontecer a um amor que se existia há anos, mas só agora fora descoberto? A distância irá apagar isso... ou o fará aumentar. Muitas perguntas, nenhuma resposta. Nada ali. Tudo vazio. A única certeza: medo.
- Eu vou voltar, Beto. Eu vou. Não quero que... não quero que pense que eu não...
- Eu sei, Manuele. Eu sei.
- Você sabe... o quê?- fala Manuele voltando-se lentamente para Roberto.
- Que você vai voltar pra mim. –responde ele a fitando nos olhos. Olhos estes que faíscam. Que brilham de algo que nenhum dos dois consegue distinguir.
- Eu não queria que fosse assim. – fala Manuele voltando-se para as malas.
- Nem eu. Acredite... mais do que ninguém. Nem eu. Tu sabe o que passei... passamos para chegar onde estamos. Mas... e eu entendo. Entendo que você está diante de uma oportunidade. Algo que... puxa... algo que vai te fazer crescer. Algo que você quer.
- Tu não acredita que eu vou voltar, né?
- Eu acredito que precisamos seguir certos caminhos. Uns na merda. Outros na lama. Mas... que seja. Precisamos. E você, amor, está seguindo o seu.
- Cerrrto. Isso que dizer que você não acredita, né? – ela puxa um cigarro, cata um isqueiro no bolso e acende. Ela dá uma tragada forte e profunda. Prende a fumaça por uns segundos e solta quase que suspirando.
- Eu te amo, sabia? Puta merda. Como eu te amo, Roberto.
Ele a olha sem nenhuma surpresa. Apenas observa o rosto da pequena. Os traços suaves e olhos castanhos. Uma boca pequena e desce a vista para o pescoço. Respira fundo.
- Eu também te amo. Eu... só tenho medo. Mas... (não me interrompa)... acredito na gente. Sim. Acredito. Que isso... essa viagem... é mais um teste pra nós. Por nosso amor. Pro que sentimos. Sim. Eu acredito.
Eles se levantam e se abraçam forte.
Nesse momento Maria chega dizendo que o ônibus para São Paulo já chegou. Manuele e Roberto trocam os olhares rapidamente e pegam as malas. Os passos parecem dizer que não querem ir, mas não são obedecidos. A catraca os espera. A espera. Ela passa a passagem pelo bilheteiro e em seguida se volta par Beto. O beija com um selo nos lábios. O último toque de bocas. Ele sabia. Ela sentia. Então, Manuele entra no ônibus rumo a uma nova vida. Beto apenas observa o ônibus partir. Seus olhos marejados acompanham a mulher de sua vida, sair do seu lado. Algo que ele lutou para conseguir. Agora, irá para longe. Maria olha para o amigo e tenta consolá-lo, pois sabe da história deles. Sabe de muita coisa. Mas mesmo segurando as lágrimas, Roberto ainda consegue falar:
- As coisas vão mudar.
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