Era uma madrugada quente quando ele resolveu sair da cama, soado e com a cabeça em chamas com tantas caraminholas sobre muitas coisas diferentes. Levantou-se e andou até a porta do quarto, parou e voltou para cama sentando-se e olhando para um vazio escuro. Tentando imaginar o que poderia fazer para resolver seus dilemas, seus problemas. Natanael era um homem comum, mas que tinha um dom único: ele enxergava almas das máquinas. Muitos dizem que elas- as máquinas- não tem alma. Não são dotadas de sentimentos. São peças, artigos a seres descartados. Que podem ser desligadas sem sentirmos remorso, que podemos destruí-los como quem quebra uma xícara de café. Mas para Natanael cada circuíto, cada fluído que corre por partes metálicas das máquinas de Serventia Humana Personalizada ou os SHPs, são gotas existências pedindo que as deixe viver. Ele passa a mão na cabeça e retira uma certa quantidade de suor de seu rosto e expelindo para o lado com um movimento do braço. Ainda na penumbra, tenta enxergar a peça que está ao seu lado esquerdo da cama. A mão percorre os lenções de algodão limpos e encontra um superfície fria, mas que emite uma quase imperceptível vibração, ali como o ronronar de um gato.
Natanael sabe que o fim está próximo quando percebe pelas frestas da janela luzes piscando em vermelho freneticamente. Ele pensa como o ser-humano pode ser tão volúvel, tão fácil de se julgar, ser julgado e ter seu veredicto decretado. Quem escreveu no manual da humanidade quem devemos amar ou porque quem devemos sofrer? A capacidade de criação é infinita, mas a capacidade de destruição é constante. Natanael sabe disso, Sabe que não pretende perder o que lhe é mais valioso. Mais valioso inclusive que sua liberdade ou sua vida. Num mundo frio de concreto, num mundo cheio de ambição e desejos promíscuos, um sentimento ainda é o mais forte, o mais rico e o mais válido e Natanael não quer perdê-lo. Ao longe ele escuta passos rápidos que logo estão a sua porta em seu apartamento. Logo um barulho forte, uma porta voa pela sala, homens com seus coturnos e cheirando a medo, preconceito e armas invadem sua residência, invadem seu quarto. Gritam alguma coisa sobre Direitos Humanos e Deveres Robóticos. Alguns berram alguma coisa sobre ser imoral ou proibido. Natanael dá uma última olhada para o que realmente lhe importa. Ela, uma androide chamada Carmem o encarava com olhos biônicos aparentemente sem emoções, mas olhando profundamente, não era o olhar de uma máquina. Não era mesmo.
Em um adeus sem voz, em um eu te amo sem som algum, alguma explode.
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