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Dias Comuns de um Diário Fechado- A Oportunidade

O estampido do revólver era escutado entre todos os presentes no local e os cavalos saiam de suas baias com seus pequenos jóqueis em cima. Em 1986 as corridas de cavalo eram um esporte sinônimo de dinheiro naquela época em Fortaleza. As pessoas, de todas as classes, vinham às corridas para apostarem em seus cavalos preferidos e tentarem ganhar uma certa quantia substancial em dinheiro. Homens elegantes em ternos impecáveis e mulheres bonitas com vestidos alinhados. Era um lugar onde se podia chegar ao topo numa trotada a mais ou ir de encontro ao chão com um pescoço a menos. As apostas eram altas. E naquela noite então, estavam altas para um certo rapaz que veio de Belém tentar a sorte na crescente cidade de Fortaleza. Mesmo trabalhando duro na construção civil, o dinheiro que entrava era pouco. Nem sempre dava para muito. Aluguel, alimentação, tudo muito básico. Para alguém cheio de sonhos como Ezequiel, não era bem o sono em que ele gostaria de estar sonhando. Ezequiel era um rapaz moreno, de mãos fortes, porte atlético e barba rala. Não bebia, mas fumava um cigarro após o outro. Não sabe quantos fumou desde que fez sua aposta no guichê do Jóquei Clube. Apostou uma boa grana numa barbada que lhe fora passada por um amigo do trabalho. Se ganhasse, levaria 20% a mais do que apostara. Com certeza lhe traria algum bom benefício. Então Ezequiel apostou na égua Vento Curto. Não era azarão, mas também o máximo que chegou foi em segundo lugar certa vez. E para o segundo lugar não há prêmio para apostadores.

Mas ele estava positivo e gruda os olhos na égua. Ela corta a primeira etapa em quinto lugar tomada de assalto pelo cavalo Ferro Quente, que segue bufando atrás dela. Os cascos atingem o solo a mais de 70 quilômetros por hora. A areia salta alto com todas aquelas pernas fortes tentando correr o mais rápido que podem. O jóquei da Vento Curto acerta com a vara na lateral esquerda da égua e puxa arreio para a direita, ela sacode a cabeça e dá uma guinada para o lado tirando Ferro Quente da jogada e depois segue em disparada para alcançar Negro Veloz, um cavalo de porte que já ganhou várias vezes aqui, mas estava em terceiro lugar. Já dobrando para a segunda etapa, os cavalos se amontoam um perto do outro tentando cabeça a cabeça estarem à frente. O barulho dos cascos na piçarra era como o marchar de uma tropa em fúria. As pessoas gritavam nas arquibancadas tentando empurrar suas apostas para frente. Ezequiel gesticulava e tentava dar apoio moral, mas claro, que naquela altura, ninguém lá dentro das raias escutaria aqueles gritos. A égua Vento Curto já estava emparelhando com Negro Veloz e os dois ficaram lado a lado entrando na última etapa da corrida. Os olhos dos animais só faltavam lhe salta da cabeça e o esforço muscular era estrondoso. Ezequiel gritava pra a égua ao mesmo que cutucava um sujeito do seu lado dizendo “É ela. Ela vai ganhar...” e o cara nem prestava atenção porque o cavalo em que apostara estava em último. Como diria a esposa que perdeu o dinheiro da feira do dia seguinte? Para Ezequiel, era problema dele. Já apontando na reta final, Vento Curto estava a uma cabeça de Olhos de Fogo, o cavalo branco que estava na frente e a meio corpo de Negro Veloz que estava atrás.

O bufar dos animais era de dar agonia. Eles lutavam por cada pequeno espaço. Por aquela passada a mais que daria os louros. Ezequiel engolia em seco quando os cavalos emparelharam de vez e ninguém sabia quem estava de fato à frente. Ele se calou e arregalou os olhos tentando acompanhar aqueles passos pesados. Pescoço a pescoço. Corpo a corpo. A areia subia e os cavalos já estavam na linha de chegada. Olhos de Fogo cai derrubando seu jóquei e Vento Curto cruza em primeiro lugar. Nunca ganhara uma corrida, mas naquela noite sim, para a alegria de Ezequiel. Pulou, cuspiu fora o cigarro, deu um grito de vitória e correu em direção ao guichê para pegar seu dinheiro com a aposta na mão. Correndo entre a multidão, ele se depara com uma pequena confusão. Dois homens brigando. A polícia apitava do outro lado em direção a briga. Ezequiel correu na lateral da luta quando um deles, um home baixo e careca parte para cima do outro com um gargalo quebrado que se desvia na última hora e acerta o abdômen de Ezequiel abrindo-lhe um corte lateral na altura dos rins. Imediatamente ele cai no chão no meio das cadeiras. As pessoas correm para ajudá-lo. Os briguentos param a briga para verem o ocorrido. A polícia chega um pouco depois e segura os arruaceiros que brigavam por conta de uma aposta. Ezequiel não tinha a ver com aquilo, mas parece que ficou no meio na hora errada.

As pessoas gritavam alguma coisa que ele não entendia mais. O bilhete estava em sua mão segura. Uma mulher alta e magra se aproximou. Loira e de olhos castanhos claros ele achou que fosse um anjo. Esboçou um sorriso, mas lhe faltara força. Estava perdendo muito sangue e seus lábios já estavam brancos. Ela rasgou alguma coisa e o virou. Amarrou no corpo de Ezequiel dando a volta em sua cintura e acochando bastante. Ele lembra apenas de que viu estrelas e depois tudo ficou escuro.

Santa casa de Misericórdia, amanhecer seguinte. No leito do hospital, Ezequiel acorda meio grogue, meio desnorteado. Olha para do dorso da mão e nota o escalpe do soro. Olha em volta e vê 4 leitos sendo que apenas o dele e outro mais a direita para trás tem outra pessoa. Sente uma dor aguda vindo de seu abdômen e então começa a lembrar do que aconteceu. Só não sabe como foi para ali, até que Suzete aparece. A loira de olhos castanhos.

- Bom dia, senhor. Como estamos hoje?
- No céu?- respondeu Ezequiel olhando para e depois para o forro branco do teto.
Ela sorriu levemente e o tocou no pulso.
- Estou no hospital?
- Sim.
- Quer casar comigo?
- Não desta vez. - ela diz enquanto observa o soro.
- Um dia, quem sabe.

Então ele recostou a cabeça no travesseiro e olhou para o lado, onde dispunha de uma mesinha com água. Ele cerrou os olhos e notou um papelzinho ali. Quando ficou melhor viu que o bilhete premiado estava lá. As coisas iriam começar de fato a partir dali. Daquele momento.

***

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